Panacéia dos Amigos

sábado

Dantas, Onésimos e Mozarlescos




Jayme Ovalle, Otto Lara Resende e Vinicius de Moraes, em 1953 (na ocasião, o músico dava uma entrevista aos dois escritores para o jornal carioca Flan). Ovalle foi personagem de Fernando Sabino, inspirou poemas de Manuel Bandeira e foi pintado por Portinari e Di Cavalcanti

De Sérgio Buarque a Manuel Bandeira, os intelectuais brasileiros discutiram a tipologia humana criada pelo compositor Jayme Ovalle. O músico paraense finalmente ganhou uma boa biografia ¿ e ela é um testemunho vibrante da época em que a cultura brasileira cabia na mesa de um bar carioca. Escreva o nome “Jayme Ovalle” no campo de pesquisa do YouTube e aparecerá, entre os primeiros resultados, um vídeo de Vinicius de Moraes. Clique sobre a face descabelada, em preto-e-branco, do poeta carioca. Vinicius discorrerá sobre uma estranha tipologia, que divide o seres humanos em cinco categorias: “Dantas”, “Parás”, “Mozarlescos”, “Onésimos” e “Kernianos”. Vinicius explica que os Dantas são os puros de coração, os bem-intencionados. Os Parás, os que buscam o sucesso — o nome é inspirado nos que vêm do Norte do país para vencer nas capitais do Sudeste. Onésimos, os sarcásticos,  os extremamente críticos que, por isso, esfriam os ambientes com sua presença. Os Kernianos seriam os estourados. E os Mozarlescos, os românticos, aqueles que se enternecem  com o luar de Paquetá. “Eu, por exemplo, sou um Mozarlesco”, diz Vinicius no YouTube.

Durante mais de 40 anos, essa tipologia animou as conversas de bar de duas gerações de intelectuais brasileiros. A primeira, a geração modernista, de Manuel Bandeira, Di Cavalcanti, Augusto Frederico Schmidt, Cícero Dias, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade e Rachel de Queiroz. A segunda, a geração de jovens escritores dos anos 50, capitaneada por Fernando Sabino, que reunia os mineiros Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos e também o próprio Vinicius. Foi Manuel Bandeira, aliás­, quem primeiro escreveu sobre a tipologia, num artigo de 1931 publicado no jornal Diário Nacional, de São Paulo. Na ocasião, ele relatava uma conversa de bar entre o poeta e editor Schmidt e o morubixaba dessa estranha pajelança sobre o comportamento humano, batizada de “Nova Gnomonia”: Jayme Ovalle, o nosso personagem.

Ovalle é hoje lembrado principalmente como compositor. Mais exatamente, autor de uma única música famosa: Azulão (“Vai, azulão, azulão companheiro, vai, vai ver minha ingrata…”), melodia sobre versos de Manuel Bandeira que mereceu dezenas de gravações pelo mundo. Ovalle também se pretendia poeta e romancista, mas não teve talento ou perseverança para criar nada de importante nessas duas áreas. Mais do que autor, foi um personagem. Não um personagem qualquer. Inspirou vários dos artistas citados acima. Foi tema de poemas de Bandeira, Schmidt e Drummond. Portinari e Di Cavalcanti pintaram seu retrato. Fernando Sabino criou um personagem coadjuvante inspirado nele — o místico Germano — em seu romance  mais famoso, O Encontro Marcado. Agora, finalmente, Jayme Ovalle ganhou um livro em que é protagonista: a biografia O Santo Sujo, do escritor e jornalista Humberto Werneck. A obra não apenas joga luz sobre um artista que poderia ter sido e que não foi. Ela retrata, com acurácia e vibração, uma era fascinante da vida cultural brasileira.

“Você não sabe certos cães muito inteligentes, muito afetuosos, quando começam a olhar fixo para a gente, ganindo dolorosamente? Querem falar e não podem. Ovalle me dá essa impressão.” A definição é de Manuel Bandeira, numa troca de cartas com Mário de Andrade, e define com precisão o que foi  — ou não foi — o artista Jayme Ovalle. Autodidata em piano e violino, ele elegeu como instrumento o violão e chegou a fazer sucesso nas rodas musicais do Rio de Janeiro do início do século 20 (nascido em Belém do Pará, na adolescência mudou-se com a família para a então capital do país). A vida toda foi funcionário público, em geral lotado na Alfândega do Rio de Janeiro. Por seu catolicismo heterodoxo, com um pé na superstição, era apelidado pelos amigos de “o místico”. Durante um período em que morou em Londres, escreveu poemas em inglês — com ajuda de uma tradutora, pois não falava a língua. Já maduro, aos 53 anos, casou-se pela única vez, com a escritora americana Virginia Peckham, 31 anos mais jovem. Ela tentou dar forma final a seus poemas, mas o esforço foi em vão. O legado de Jayme Ovalle se compõe, assim, das 33 canções que compôs ao violão — e das infindáveis conversas em mesa de bar que inspiraram dezenas de artistas.

Nisso, era imbatível. Em sua maneira anárquica de falar, destilava vários achados por copo. Um bom exemplo é uma de suas poucas entrevistas, dada em 1953 para Vinicius de Moraes e Otto Lara Resende, então a serviço do semanário Flan (veja foto ao lado). Eis alguns dos achados de Ovalle: “A morte é a única coisa que é completamente nossa. A única coisa individual, própria, que a gente alimenta desde que nasce. Todo o resto não nos pertence. Nosso nascimento, por exemplo, é dos nossos pais”. Ou então: “Todo mundo é criado com o dom da poesia, e só deixa de ser poeta porque perde a inocência. Quanto mais um homem cresce carregando consigo a sua inocência, maior poeta ele é”. (No livro O Encontro Marcado, Fernando Sabino imita o jeito de falar de Ovalle de maneira magistral. Eis um “ovallismo” do personagem Germano: “Londres ninguém nunca viu: se tem fog não se vê, se não tem fog não é Londres”.)

De toda essa conversa de botequim, o destaque é mesmo a “Nova Gnomonia”. O capítulo de O Santo Sujo que a descreve diz menos sobre Ovalle do que sobre a vida cultural da época. Era um meio em que todos se esbarravam quase que diariamente, e a tipologia de Ovalle era o esperanto em que se comunicavam, o espelho em que se reconheciam. Por seus arroubos, Augusto Frederico Schmidt era considerado Kerniano. Ovalle, o criador da tipologia, reservava-se o direito de se considerar um Dantas — a categoria à qual todos queriam pertencer. Sobre o pintor Cícero Dias havia uma dúvida. Ele se achava Dantas, dava a impressão de ser Kerniano e havia quem o classificasse como Mozarlesco, devido a suas olheiras. E o escritor Gilberto Freyre, apelidado ironicamente de “modesto sociólogo”, seria um exemplo acabado de Onésimo — pela forma irônica com que ignorava ironias como essa.

Na cultura brasileira, a existência de rodas de boteco como a de Ovalle ganha interesse na medida em que alimentou a criatividade dos artistas que se reuniam em volta dos copos. Manuel Bandeira costumava dizer que o livro Libertinagem, no qual realiza de forma mais acabada seu projeto de poesia modernista, devia muito à incorporação das conversas com amigos. A amizade boêmia que reuniu Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Helio Pellegrino — esmiuçada em outro belo livro de Humberto Werneck, O Desatino da Rapaziada — também alimentou as criações de todos eles. Vinicius de Moraes não participou ativamente da turma de Fernando Sabino, mas fundou a própria igreja boêmia — com a qual, anos mais tarde, inventaria o estilo musical pelo qual até hoje o Brasil é conhecido no exterior, a cinqüentona bossa nova.

Hoje os artistas brasileiros não cabem mais no mesmo boteco nem na mesma cidade. A criação artística é  pulverizada, e todos têm horror a formar escolas. Será possível a repetição de um ambiente cultural como o do Rio de Janeiro no século passado, que é descrito em O Santo Sujo? Ou mesmo um artista como Jayme Ovalle? Essas perguntas ficaram no ar depois do debate mais comentado da Festa Literária de Parati,  no mês passado, em que Humberto Werneck se reuniu com os escritores Paulo Roberto Pires e Xico Sá. E que se prolongou da mesa literária para as mesas de bar, fazendo da “Nova Gnomonia” assunto recorrente entre os participantes da Flip, que aplicavam as categorias ovallianas à cultura brasileira atual (veja alguns exemplos ao lado). Sintoma talvez de que, mesmo num ambiente em que a conversa de bar foi em parte substituída pela conversa de blog, a boemia cultural ainda pode ser tão apaixonante — e quiçá inspiradora e produtiva — quanto no tempo em que os artistas se reuniam em torno da figura mística de Jayme Ovalle.

Fonte: Revista BRAVO! | Agosto/ 2008 -  por João Gabriel de Lima